Cartas para Gisberta

Mulheres transexuais escrevem em homenagem à brasileira símbolo da luta LGBTI no Porto

Texto: Leilane Menezes e Janaína Silva
Fotos e vídeos: Janaína Silva

O edifício Pão de Açúcar envelhece enquanto a vida passa à margem de seu abandono. As paredes empoeiradas enegrecem com a ação do tempo e são testemunhas do desfile cotidiano de banalidades: pais empurram carrinhos de bebê, casais passeiam de mãos dadas e idosos jogam xadrez na praça. Eles não sabem, mas aqueles muros ocultaram um dos crimes mais brutais da história do Porto: o assassinato de Gisberta Salce Júnior por um grupo de 14 jovens, entre 12 e 16 anos, em 22 de fevereiro de 2006.

Desde então, o tempo já não passa da mesma maneira para todos. Gisberta Salce Júnior não envelhece com a cidade e terá para sempre 45 anos, idade que completara quando foi torturada e morta naquele endereço da Avenida Fernão de Magalhães, próximo ao Campo 24 de Agosto. Gisberta era mulher transexual, brasileira, apresentou-se como artista em casas noturnas do Porto e viu sua degradação chegar ao viciar-se em drogas e adoecer.

Gis, como era conhecida entre amigos e familiares, nasceu no interior de São Paulo e, aos 20 anos, veio para a Europa em busca de liberdade para ser quem era. Enfrentou problemas para conseguir trabalho, viveu à margem da sociedade como imigrante, por estar sem visto, e terminou seus dias a viver em uma barraca no edifício abandonado que ganhou o nome extra-oficial de Pão de Açúcar, pois pertencia à rede de supermercados homônima.

“Gisberta era toxicodependente, trabalhadora do sexo, sem abrigo e soro positivo. Com uma série de vulnerabilidades. O destino da Gisberta não foi só o de ser mulher trans, mas também o de ter conjugado nela um conjunto de situações que a levaram aquele nível de marginalização”, afirma o psicólogo responsável pelo Centro Gis, espaço de acolhimento a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo (LGBTI) no Porto, Luís Pinheiro.

O prédio ficava vizinho a uma instituição de acolhimento de menores e alguns rapazes que viviam na entidade passaram a frequentá-lo para fazer grafite. Lá, conheceram Gisberta e tiraram sua vida “por diversão”, como consta no processo do caso de homicídio que chocou Portugal. Durante três dias, Gisberta sofreu agressões como chutes e pancadas com barras de ferro. Quando os agressores acreditaram tê-la matado, jogaram seu corpo em um poço nos fundos do terreno. Gisberta ainda estava viva, apesar de extremamente ferida, e morreu afogada.

Os 14 envolvidos no homicídio confessaram o crime no mesmo dia. Atualmente, todos encontram-se em liberdade. No processo judicial, o juiz concluiu que a culpa pela morte de Gisberta foi da água do poço. Mesmo depois de morta, Gisberta não teve seu gênero respeitado. No processo, ela é citada como Gisberto (nome que constava inicialmente em sua certidão). Nas notícias muitas vezes se reportavam a ela como “o travesti”, com pronomes no masculino.

A memória de Gisberta segue viva. A equipe do Invictas convidou mulheres transexuais a escreverem cartas para Gisberta, como forma de dialogar sobre mudanças que ocorreram no país nesta última década e “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.”

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Se estivesse viva, Gisberta seria apenas um ano mais nova que Rute Bianca, 59 anos, mulher transexual e amiga próxima de Gis. Rute foi uma das primeiras pessoas a falar publicamente sobre o direito das transexuais na década de 1990, em Portugal. Naquela década participou de diversos programas de televisão do país para debater, discutir e informar questões sobre os direitos, as dificuldades das pessoas trans.

Rute nasceu em um corpo que não era concordante com a expressão de gênero com a qual sempre se identificou. Ela e a família sofreram preconceito por ela não se adequar à condição masculina. “Naquela época algumas crianças chamavam-me de Manoelina, fazendo chacota com meu nome de batismo, Manoel”, relata Rute.

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Rute Bianca era a melhor amiga de Gisberta. Foto: Janaína Silva

Uma das memórias marcantes da infância de Rute são de quando colegas de classe tentaram violá-la. Como ela reagiu à agressão, eles fizeram queixa contra Rute e a escola a expulsou. Os pais a levaram ao médico, pois não entendiam porque “o filho se sentia uma rapariga”. “Naquela época não havia informação sobre transexualidade. Acreditava-se que ser homossexual era uma questão de doença, perversão e pecado”, afirma Rute.

Após ser avaliada pelos médicos e psicólogos, os pais da Rute foram orientados a trancá-la em algum lugar até que ela mudasse de ideia. Aconselhou-se também fazer aplicações de testosterona. Aos 15 anos, ela tomou uma das decisões mais ousadas da própria vida: juntou dinheiro e foi para a França para trabalhar com espetáculos a fim de obter dinheiro necessário para fazer toda a transição (cirurgia de reatribuição sexual, terapia hormonal) para que pudesse se sentir como desejava. Conseguiu.

Durante a rotina de shows e espetáculos, Rute conheceu em Lisboa a melhor amiga, Gisberta. Sobre a luta pelos direitos e conquistas dos LGBTI, Rute Bianca salienta: “devemos continuar sempre a informar, as pessoas têm memória curta, é preciso estar sempre informando, lembrando, através de debates, discussões, na televisão, na rádio e em todo lugar”.

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A advogada Francisca Solange Martins, 60 anos, também escreve para Gisberta:

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Francisca Solange defende mulheres vítimas de violência. Foto: Arquivo Pessoal.

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Ângela Sampaio, 41 anos, é ativista e mantém um canal no YouTube onde discute temas relacionados a feminismo, gênero e racismo. Ela também aceitou o convite para escrever em memória de Gisberta:

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A quarta e última carta a Gisberta é anônima e foi enviada à equipe do site por meio do Centro Gis:

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Manifestações pelas ruas do Porto lembram Gisberta. Foto: Arquivo Panteras Rosa.

12 anos depois: em que sociedade vivem as “Gisbertas” de 2019?

O nome de Gisberta tornou-se sinônimo de luta por direitos LGBTI, em Portugal. Em 2006, houve a primeira marcha do orgulho gay no Porto e na última década, aconteceram mudanças significativas no país, como a permissão da adoção de crianças por casais LGBTI, legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a descriminalização da homosexualidade – até 2003 era possível despedir trabalhadores que fossem gays ou lésbicas.

Somente em 2018 a transexualidade deixou de ser considerada patologia. “Antes de Gisberta, não havia lei que protegesse as pessoas trans. A primeira Lei de Identidade de Gênero é de 2011 e, na sequência da discussão nacional que houve após o crime, houve uma grande cobertura mediática e também no âmbito jurídico sobre o homicídio dela e a causa LGBTI”, relata o representante do Centro Gis, Luis Pinheiro.

O processo para alteração de identidade foi uma das maiores batalhas nesse período. Em Portugal, para conseguir fazer essa alteração, era necessário ter um relatório o qual atestasse disforia de gênero, quadro clínico mencionado na Lei Sobre Identidade de Gênero, alterada em 2011.

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Até esse momento, a mudança do nome era permitida somente para quem tinha disforia. A Lei de Autodeterminação veio, em 2018, para proteger também pessoas que não manifestavam desejo de fazer a transição biológica, por não sentirem necessidade de fazer terapia hormonal ou cirurgia de reatribuição sexual.

“Há pessoas trans para as quais o que mais importa é o simples fato de poderem mudar o nome no cartão do cidadão e adotarem uma expressão de género mais concordante com a identidade de género”, ressalta Sara Forte, psicóloga e coordenadora de projetos do Centro Gis.

O Centro Gis, instituição criada pelo grupo Plano I e financiada por fundos europeus, nasceu em 2017 e já atendeu 347 utentes LGBTI. No local, é oferecido apoio psicológico, individual ou em grupo, consultas de psiquiatria, terapia hormonal de substituição (direcionada à população trans) e aconselhamento jurídico. Todos os serviços são gratuitos.

Quem procura o Centro Gis também encontra apoio jurídico para auxílio no processo de transição social, mudança de gênero e também em questões associadas ao bullying escolar, discriminação laboral e em assuntos referentes à violência doméstica.

Ultimamente, o Centro tem recebido alta demanda de pedidos para processo de nacionalização em Portugal, em particular de brasileiros que desde a última eleição presidencial têm receio de sofrer perseguição por pertencerem ao grupo LGBTI. São pessoas que, assim como Gisberta, procuram um lugar seguro para existir.

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